10 de junho de 2011

Ensaios de Cabala - A razão de ser Kli


Na história da Humanidade são incontáveis as metáforas que são atribuídas ao ser humano bem como a sua representação no plano, que reconhece a existência daquele que se revela como entidade espiritual, planetária, e e em busca profícua do pleno sentido de ser, para além das classificações impostas pelos códigos filosóficos, religiosos e culturais, em análise primária.
As metáforas a que me refiro são pedras angulares para o enlevo de uma realidade, que descobre no mistério o sentido de algo que emerge a partir de um nada absoluto, e caminha, paradoxalmente, para outro nada, mais absoluto ainda. Esse percurso, esférico, retilíneo, sinuoso ou vertical, qualquer que seja o ponto referencial que se utilize para a compreensão da caminhada do Homem sobre esta terra não menos enigmática, também, tem como função primordial conduzir o próprio Homem ao seu estado máximo de reflexão sobre si, sobre sua relação com o próximo e sua relação especular, ainda que infindáveis questionamentos se percam em sua trajetória por falta completa de respostas. Esta é a cifra do mistério; e sob o silêncio agudo do inefável, existimos, somos, e, portanto, vislumbramos a possibilidade de termos uma identidade que nos defina nos vários universos que nos acolhem: do ecossistema interior de cada um à circunferência intangível do Cosmo, passando, pela ordem telúrica - cordão umbilical que nos prende à gaia sagrada, e que nos confere a única certeza nas impressões digitais que portamos; a de ser adamah - terra, pó -, e, em análise secundária, poeira estelar.
Destarte, não importa saber quem somos; não importa, por esta via (quiçá uma via de mão única) ter respostas significativas ou formulações exatas para o imediatismo que nos impele para o mundo exterior, provocando o nosso afastamento da pátria subjetiva que nos compõe, em tons harmônicos e de melodia pacificadora. Ao contrário, o que deve prevalecer, acima de todas as espirais, espalhadas no vácuo sideral, é a manutenção do processo que nos faz rememorar, quando, em tempos imemoriais, já formávamos um elo minúsculo na cadeia molecular denominada a partícula de Deus. Saber, com efeito, que somos uma fagulha inapagável e que nos religa à chama primeva. Mito, poética, figurações ou devaneios? Não, pois a voz que ressoa como diapasão em nossos ouvidos é, indubitavelmente, o nosso estado profundo de consciência que, a serviço da espiritualidade, conclama para sermos o que remotamente (já) éramos, e que o reencontro com a nossa verdadeira face especular é condição sine qua non para que sejamos, de fato e de direito, seres verdadeiramente humanos.
A narrativa milenar, que apregoa a verdade, quase inconteste, de que somos feitos do barro, e que na textura de seres argilosos, recebemos o fôlego que incendiou em nossos pulmões a Vida - ruach -, constitui-se no desenho fundador da raça humana quando o Criador materializou no mundo o seu desejo mais augusto, e, portanto, belo e perfeito: a criação de um ser à imagem e à semelhança de seus contornos e personalidade insondáveis. Bonecos feitos de terra que, misturados na água, tiveram seus corpos criados na expressão máxima do desejo do Criador; formas diferenciadas de outros seres que, segundo estórias do repertório que trata da criação do mundo, antecederam a nossa existência no mundo. Linhagem nascida da luz plena em estado de graça eterna: os Anjos.
A Luz, substância primeva, que formou do Nada a essência e a aparência, concomitantemente, atravessou todos os elementos criados e que repousam no espaço temporal e atemporal. A partir, portanto, da luminosidade, as cadeias infinitas, que formam a grande teia que é o universo, crescente e multidirecional, são receptáculos da própria luz, em estágios diversos, gradações multiformes e singulares que se presentificam em todas as manifestações conhecidas e não - conhecidas da Vida. Espetáculo divinal que não revela a mensagem teogônica, mas mantêm a fluidez, a permanência, e, sobretudo, o movimento contínuo e inesgotável, que é a presença do Criador no rastro de sua eternidade.
Nas mãos de Deus, mais do que seres que emergiram do barro disforme para alcançar a anima, somos vasos na mão do Oleiro. Vaso de barro. Vaso sem forma e vazio. Vaso sem vida. Coisa inanimada. Nada. Nada absoluto. Este é o princípio absoluto do Kli em sua poiesis fundadora. Imersos no suspenso do infinito como âncora sem cordas, somos porosos. Por milhões de "janelas abertas" em nossos corpos de barro, pois somos vasos em pleno vácuo, a Luz atravessa, e os vazios, pouco a pouco são preenchidos. Antes da Luz, as Trevas densas e aparentemente eternas. Depois do brilho fulgurante da luminosidade que vem da fonte do Criador, somos vasos que se plenificam com a presença do Altíssimo - relação de amor bilateral em que o pai se regozija com a felicidade do filho, e este último através da união com aquele.
Uma vez que somos vasos, plenos da luz divina, nossa consciência espiritual é despertada, e, desse modo, nos saciamos com o gozo arrebatador, que vem do Alto, e que nos torna seres ligados àquele que nos criou, por um lado. Entretanto, experienciamos a liberdade, o arbítrio - atributo da deidade e que nos confere a vontade própria, o desejo, o sentido renovador do prazer. Cenário inconfundível do diálogo entre o homem de barro e seu criador; palavra tornada concerto entre o Homem e Deus; relação cambiante de amor entre o Criador e a Criatura. O primeiro sente-se afortunado por propiciar ao segundo o prazer eterno, concedendo a satisfação plena e a felicidade. O segundo, volvendo a face para a Adoração, engrandece o primeiro, através do reconhecimento da Luz, sua recepção espontânea bem como sua função indelével na condição de elemento de completude de nossos corpos espirituais diante da face do Altíssimo.
A plenitude da Luz alcança seu apogeu como o sol que rasga o céu em todo seu esplendor, promovendo o fenômeno da vida e dissipando as trevas no abismo profundo dos oceanos universais. O vaso, nesse estágio crucial, um objeto vivo que, um dia, sentiu as agruras da escuridão, é relíquia resplandescente e portadora da luz que verte na fonte da Criação, sempre eterna, sempre necessária. A luz, nessa trajetória enigmática e sobrenatural, refém de nossos limites, pois somos vasos perfeitos, pertence aos nossos corpos de barro, às nossas fronteiras porosas. Iluminados e suspensos no Éter, realizados e em estado de perfeição, graças ao Criador, uma vez regozijados com a luz primordial, desejamos transbordar; ir além dos limites da luz, vazar para atingirmos patamares elevados da espiritualidade, em processo constante de evolução. A Luz, outrora nossa companheira única e fonte que nos alimentou por muito tempo, derrama e preenche prazerosamente outro vaso. Este vaso preencherá outro, que preencherá outro e os elos vivos se formam ad infinitum, e a luz preencherá no vazio suspenso todos os vasos que existirem.
O princípio do Altruísmo é deixar transbordar a Luz que nos preenche e nos plenifica como vasos que somos; do barro que nos formou e da anima que nos tornou entidades vivas e pontos de luz do Criador, brilhando mais do que as estrelas nas realidades existentes para iluminar outros vasos. A semente do Criador germinou em nosso ventre telúrico que, na escuridão, floresceu, embora não percebêssemos que até nas trevas a imperceptível luz gera a vida. Sentimos, na tessitura da argila, quão maravilhoso é ser dadivoso, pois o ato de dar se sobrepõe ao ato de receber, pois ser Kli é ter a consciência de que só é legítimo o prazer da alma quando o Outro é alcançado pela prática altruística do bem, da compaixão, e, em última análise, do amor incondicional.
Ser Kli é experienciar no vazio suspenso a semelhança que nos aproxima do Criador; transportar a Luz para outros vasos é esvaziar o nosso ser, os nossos desejos que, no ato de renúncia constante, alonga nossos corpos espirituais; preencher outros vasos é desaparecer na luz cósmica para ascender à condição de energia eterna e vital - sopro que um dia saiu dos lábios de Deus.