27 de abril de 2013

O HOMEM (É UM) CUBO


A concepção do Homem sobre a sua constituição esotérica e iniciática está cifrada em um mistério de dimensões atemporais. Assim, jaz na própria Eternidade a fagulha incendiária duma consciência protoimaginária, quiçá responsável pela aparição, pela descoberta de si e, sobretudo, pela forma que o ser das contradições assume na realidade;  muito mais do que uma grande ilusão de ótica do que uma constatação real e de significação modelar, que possa transformá-lo em uma entidade suprema; e, portanto, primo na cena do Universo. Neste sentido, não é despretensioso afirmar que há um abismo colossal entre aquilo que deveria ser e aquilo que efetivamente é na complexa geometria da vida. Logo, um corpo diante do espelho não duplica outra identidade, mas, antes, uma imagem. Uma imagem que nada tem a ver com o corpo que a originou, mas apenas um reflexo. No entanto, a imagem jamais será um corpo, pois, para além do reflexo, ambas as categorias habitam espaços distintos e impenetráveis. O corpo jamais poderá adentrar a realidade especular; e a imagem, por sua vez, jamais será um corpo. As verdades são coexistentes e paralelas. Desse modo, o desejo de ser além de si mesmo é algo que causa turbulência no Homem ao compreender-se como ser nomeado pelo espaço marcado pelos limites e pelas margens acidentais. Decorre daí a impossibilidade de o corpo ser a imagem e/ou a imagem ser o corpo. Onde há corpos, as imagens são meras ilusões duma realidade, que ninguém sabe exatamente o que é; onde há imagens, os corpos são refrações imperfeitas, que não significam absolutamente nada; mas, antes, sugerem, na linha do possível, aquilo que pode ser e o que pode não ser.



Uma das tarjas que estigmatiza o Homem em sua caminhada mística é, sem sombra de dúvidas, o dualismo. Este dualismo é a fenda aberta, que divisa todos e tudo aquilo que se sustenta na realidade circundante em aberturas e fechamentos incontroláveis, desconhecidos e necessários para a existência e a permanência da força sobrepujante do Real. Não há espaços de junção ou de religação. Qualquer tentativa, nesse sentido, é ato gerado por estados constantes de hipocrisia; de falseamento da realidade externa, pois, o Homem, ao refutar-se a si, procede a outra espécie de esvaziamento. Uma ação calcada no vazio das ações desobjetivadas e que são destituídas do exercício pleno do autoconhecimento: tarefa que as consciências, libertas das amarras terrenas, deveriam realizar para que a legítima dessubjetivação acontecesse para elevar o Outro a patamares sempre altaneiros e em progressão contínua e perpétua. Eis, portanto, o princípio do Altruísmo: o vaso - kli - é preenchido; posteriormente, a peça é esvaziada para preencher outro kli, em uma rede infinita de vidas para que a Luz essencial atravesse os poros e ilumine, de forma contínua e inesgotável, outros infinitos klins no mundo das formas e de substâncias palpáveis e perecíveis. A luminosidade, elemento exógeno, por excelência, invade e plenifica o Kli para que este reflita a luminescência em outros vasos. O contrário dessa ação revela, para além da estagnação, o dualismo que põe em xeque a identidade do Homem, sua missão no mundo como desdobramento da Eternidade e sua capacidade para o exercício efetivo da descoberta de si: condição sine qua non para seu verdadeiro crescimento como fragmento deslocado de uma realidade suprema e ignota, à luz das ciências telúricas, e para libertação do corpo físico que o (con)trai em proporções minúsculas, dada sua natureza irrevogavelmente selvagem e muitas vezes indomável.



Se, por um lado, o dualismo, acima referido, cinde ontologicamente o ser humano em duas partes distintas, onde o seu estado originário, antes uno e aparentemente indivisível, é dividido violentamente, provocando os conflitos, as crises e os confrontos, que exuberantemente revelam a fragilidade do humanus humanum; por outro lado, este dualismo revela, na cisão, o paradoxo da existência. Qual seja: há um espaço torneado no interior limitado de cada um; há linhas sinuosas, herméticas e sem fim nos lados largos, retilíneos e perfeitos dentro de cada ser, que fora fissurado nos primórdios. Há, com efeito, uma esfera mais do que perfeita flutuando, orbitando, misteriosamente, no espaço cúbico de todos os homens e mulheres, que, um dia, nasceram, cresceram e morreram. Eis, portanto, a face globular do enigma: esferas suspensas só existem pela força dos cubos que as guardam. Cubos só sobrevivem em virtude das esferas, que, veladas, mantêm aqueles em estado vital. Uma relação simbiótica? Com efeito, não é a resposta.  A constatação do fenômeno ou a consciência dos seres sobre si e acerca das coisas, como são na realidade, é a prova cabal de que um fio maior de existência alinhava dimensões, que não são contrastantes em ambientes singulares, mas que se complementam através do dualismo, que, em última análise, impõe o duplo como régua; a régua como medida; a medida como equilíbrio; o equilíbrio como eco; o eco como princípio. O princípio inquestionável de todas as coisas, que pulsam e que vão além do sangue, em cadeias de códigos indecifráveis para a compreensão humana; i. é., a Vida, a fonte inesgotável,  presente em todos os universos existentes e aparentemente improváveis.



A natureza cúbica, que torna os humanos entidades singulares no audacioso plano da Criação, está determinada em sua equação poética e fundadora dos 4 elementos caóticos, que constituem o ser humano. A saber: a Água, o Fogo, a Terra e o Ar. Sem estes princípios, o Nada Absoluto não teria sofrido a indevassável metamorfose, que transformou a matéria amorfa em substância modelar,  com significantes e significados, espalhados na vastidão do Universo. Sem este princípio, a compreensão humana jamais teria existido e o Ser, gerado e nascido pelo sopro da divindade maior, não teria produzido a energia originária, que move os entes a portarem (trans)biologicamente a vida. Tudo isto nos limites cúbicos e perfeitos, que balizam o código que identifica a bestialidade e a inteligência, ambas presentes, dualisticamente, no Homem: personagem encravada no cenário perfeito da physis. Nem tampouco os pré-socráticos, na Grécia Antiga, poderiam dar à luz os seus ensaios filosóficos sobre a existência e os mistérios rotundos, que ultrapassam o sentido imanente das coisas, através de uma prática contínua do pensar a partir dos elementais que fundaram o visível, o invisível, o aparente e o não - aparente. No entanto, a força concêntrica e modular do cubo não está no encontro perfeito de suas retas em ângulos gêmeos e fantásticos, mas na circularidade de sua massa interna e invisível, que dá sentido a outra forma geométrica perfeita, e, que, em conjunção com aquele, promove o equilíbrio e religa o Homem às suas reminiscências como centelhas desprendidas de um fogo inconsumível, no tecido da própria Eternidade. A Parte e o Todo estão lado a lado, mas não se tocam. A despeito disto, portanto, impõe-se a questão fundamental: o cubo protege a esfera ou é a esfera que sustenta o cubo?



Para se descobrir como cubo é necessário descobrir-se como esfera. Para ser esfera é necessário ser cubo. A questão cúbica está no axioma esférico; a sentença esférica completa-se na ordem cúbica. Ainda que intangíveis, cubo e esfera interpenetram-se em uma dimensão flexível, plasmática e informe; dimensão à qual humano algum jamais tivera acesso. Lugar de flutuações cósmicas e amalgamado pelo Antigo dos Dias. Mas quem é o Antigo dos Dias? Seria o Antigo dos Dias uma essência humanizada antes de o Homem ser formado; antes de o Kli ter tomado forma ou ser moldado como vaso nas mãos do Oleiro? Há um vácuo e um espaço, aparentemente desprovidos de substância, que, no vazio que não é, no nada que se apresenta como categoria do estádio zero das ontologias possíveis, que uma força presentifica-se e marca o não - tangível como latejamento indeterminista do Inefável. Inefável que encerra o mistério num penumbrismo profundo e silencioso; Inefável que lança a equação do enigma - enigma que sustenta no ar a esfera que revitaliza o cubo e o cubo que retroalimenta a esfera, e que mantém o Indizível no trânsito das forças ocultas, resguardando o traço da entidade suprema, que está em todos os lugares, ubiquamente, e que não está em lugar algum - princípio do paradoxo e dos seus contrários, onde a esfera jamais poderá ou será recortada para se tornar um cubo, ou um cubo que jamais poderá ter suas retas encurvadas sobre si mesmo para se transformar em uma esfera. Princípio da imutabilidade do que é; que é do pertencimento do infinitivo de um tetragrama insondável e sem qualquer tradução na linguagem que define o Homem como um ser cúbico e portador de uma esfera essencial.



Cubos não formam esferas, mas dão sentido à sinuosidade que perfaz os pólos insondáveis, que há em cada entidade luminescente no universo. Esferas também não formam cubos, mas engendram o fio da existência, que não interrompe ciclos, mas renova-os, através de um processo contínuo e singular de transformação e renovação. O princípio do Tikun, como lei fundamental, arregimenta, no sinergismo do cubo e da esfera, em consonância exemplar, o fenômeno da energia em constante mutação. O princípio mutatis mutanti rege, portanto, todos os graus de vitalidade, que constituem e conferem a densidade da rede complexa, que é a Vida, estendendo-se das estruturas adimensionais dos nanocorpos, presentes no Real Absoluto, às dimensões gigantescas dos polimorfos, que sustentam a própria rede, na qual a vida multiforme repousa e reina soberana como energia essencial. A cadeia que não tem fim é a constatação inequívoca de que os espaços modulares descrevem a rota da perfeição. Assim, a consciência finita e limitada de cada ser, que, paradoxalmente, vislumbra em lapsos temporais o rastro do Infinito e o reflexo da Eternidade, através de uma memória parcialmente perdida ou localizada em registros fragmentados, percebe em si mesma o traço robusto da perfeição, que não está distante ou alhures de cada qual, mas, antes, está internalizado e, simultaneamente, interligado à ordem suprema, que não distingue gradações ou sistemas evolutivos da luz nos corpos suspensos, no vácuo dos espaços nomináveis e não - nomináveis.  A esfera, o avesso do cubo, deflagra geometricamente o perfectum, simbolizando no arquétipo da Humanidade a lacuna, o vazio, a falha que permite ao Homem o sentimento da busca da completude que não tem. O perfeito denuncia a natureza do imperfeito. O cubo, por sua vez, emoldura o estado de uma perfeição inaugural na qual a esfera é uma sombra distante de uma natureza em suspensão. No cubo, os limites; na retidão de suas linhas, a necessidade de evolução e o desejo de expansão para além de suas fronteiras.



A sorte, a fortuna, o fado e o destino - lados idênticos de uma realidade, que experiencia no ar o jogo mortal que envolve todos os seres - os vivos e os brutos - na teia da Vida. Na vida, um cubo, que jogado para o alto, decide os caminhos que devem ser seguidos por uns ou atalhados por outros. Na superfície do cubo, a realidade em mutação constante, cujo contraste com as linhas retas e aparentemente sólidas denuncia as esferas que tonificam e dão sentido ao mistério que há em cada um, promovendo a elevação espiritual; desfazendo em espaços, progressivamente em expansão, os limites que aprisionam fôlegos em corpos efêmeros; grilhões que se rompem, onde as formas, geometricamente perfeitas, se desconstroem para conceber outras realidades, outros mundos; energeticamente completos e ascéticos. Assim, cubo e esfera, diferençados entre si, mas complementares em suas essências fundamentais, permanecem inatingíveis e incompreensíveis à vista do humano demasiadamente humano. A realidade cúbica é irreal sem a força motriz, operante e transformadora da esfera. A realidade esférica inexiste sem a blindagem do cubo, que, ao proteger as curvas perfeitas da esfera, guarda o enigma imemorial de um tempo mais antigo  do que os próprios dias, mantendo, simultaneamente, na imensidão de um horizonte afiado em uma linha mais do que reta, a vértebra espiralada, que une cubo e esfera em um espaço ímpar: móvel  intáctil de uma linguagem, cujo sentido é vedado às hordas angelicais e proibido ao acesso do Homem. O vaso - kli - é instrumento irrevogável para a recepção e posterior transbordamento da Luz; da sua aparição, provinda das mais altas esferas, aos poros unicelulares dos corpos vazados. Os klins, em cadeias infinitas, flexionando o plural na própria singularidade, transformam a luz do espaço superior em energia pura, densa e não - quantificável na dimensão inferior. Cubos e esferas conjugam-se harmonicamente para consagrar nas realidades multidimensionais a universalidade, a imanência, a transcendência e a permanência no Infinito da equação misteriosa, que faz do cubo uma esfera perfeita e da esfera um cubo em movimento retilíneo e curvilíneo -, sintagmas grifados no código genético da espiritualidade, que une os elos descendentes e ascendentes em cadeia insofismável.  A par disto, emergem duas questões fundamentais: por que um dado, algo tão singelo e singular, só tem sentido se for retirado de seu estado inercial? Um dado, jogado para o alto, não se transforma em uma esfera quadrática? Ao tombar na tábua plana, o que sobressai aos olhos inteligíveis não é a face laminar de um dos lados iguais, mas a esfera numérica, que decide o destino do jogador. O quadrado repousa, mas a esfera gira. No giro da roda, a rota do destino - veredas barrocas, mapas do livre arbítrio. Na dimensão do cubo, a face enigmática da perfeição, que se desvela pela emergência dos números - senhas perfeitas, que permitem escoar nos limites humanos a própria infinitude; cenas caóticas, cósmicas e, sobretudo, divinais, contempladas todas pela consciência klítica - candeia viva que jamais se apaga. Imperfeitamente perfeito, o Homem é um cubo.