22 de outubro de 2011

A FACE DO ABISMO




A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do Abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. Gênesis 1:2. 
                 

Um dos maiores axiomas em torno do evento da pré-criação e da criação do mundo, segundo a sentença declarada no gênesis bíblico, está na narrativa sintética, como está apresentada, e, desse modo, blindada, acerca dos possíveis choques de forças que antecederam o nascimento do espaço, do tempo, e, em último estágio, de todas as estruturas que manifestaram o complexo da Vida, desde o esplendor inenarrável da grande aurora, que plasmou o sobrenatural e o natural em tomos indivisíveis - a concepção fundadora do átomo universal congeminando no útero primevo o sêmen e o embrião do Inefável; das formas mais simples às mais complexas. O intricado jogo na qual o fôlego teogônico reverberou, na malha infinita que atravessa as fronteiras sem fim do Universo, ou de suas formas, que se multiplicam continuamente em hologramas pulsantes, e que testemunhou, informe, as cenas primas que fraturaram as leis fundamentais da essência no devir avassalador de / em sua transubstanciação.  




O Deus que é - O Grande Eu Sou -, na permanência cíclica e eterna do seu próprio Ser, sofreu, para assombro da compreensão humana, a turbulência de sua energia inquantificável; seu Caos em puro estado de estremecimento modular, ao proclamar, sob o espargir de sua natureza soberana, a sua vontade única, colossal e eterna. Na ruidosa cadeia de sons inaudíveis e furiosos, antes da trajetória inevitável da Luz, a aparição, na matéria escura, da entidade soporífera, que se espalhou estrategicamente por todas as ordens, esferas e hierarquias etéreas, e que se estabeleceram na unidade cósmica, desprovida do Tempo, mas que perderia, no acidente monumental, que fora a batalha das hostes angélicas, a integridade excêntrica do Fogo, o elemento que forjou o surgimento de todas as densidades presentes nos mundos; na imensidão sideral que o Homem ainda desconhece.



A fissura provocada no duto espaço - tempo, na condensação do vácuo, e, por conseguinte, suspenso na eternidade, fora a desmedida na proto-formação da Criação, e que separou ad eternum a realidade da não - realidade; a substância da não - substância: o tempo do não - tempo; o espaço do não - espaço; o vivente do não - vivente; o finito do não - finito; e o mortal do não - mortal.  Os diversos e incontáveis hiatos, que determinam o estilhaçamento e a fragmentação da massa primordial, que era una e indivisível para se tornar múltipla e avariada, conferem o tom da decadência por que passa o processo de criação, que emerge do Nada, tendenciosamente à inclinação de si, de forma monumental. À sombra do Altíssimo, outras sombras conspiraram contra o mapa do Criador, que vislumbrou, na ruptura dos elos da eternidade, o nascimento do Tempo: voraz, traiçoeiro, faminto e cego, pois todos são devorados impiedosamente por sua orfandade, por sua natureza hedionda, que transcorporifica, de forma fantasmagórica, o abandono, o desamparo e a solidão infinita: faces dantescas de outros abismos; o Caos vertiginando-se em / sobre seu próprio ventre como o vórtex sem fim, onde o estômago do Universo digere tudo, ciclicamente. 




As primeiras páginas da Criação, neste sentido, não espelharam o sonho de Deus. Ao contrário: os eventos que antecederam aquela, no decurso de seu acontecimento, revelaram a paisagem terrífica, que se desenhou nas cimeiras camadas da espiritualidade. As substâncias primevas, singulares e únicas, por excelência, experienciaram a separação que se precipitou sobre si mesma, dando origem ao tenebroso Abismo.  Neste sentido, e, em primeira dimensão,  o Abismo era a consistência de uma entidade incorpórea, sem limites e ubíqua, plasmando, transformando e eclodindo as forças emergentes do Caos, em escalas multidimensionais e no rastro do infinito. Em segunda dimensão, o Abismo transmigra das esferas etéreas para se densificar na espiral hedionda, personificando remotamente a garganta de Deus, que tudo engolfa, que tudo engole, que tudo expele; destruindo paraísos e construindo infernos. Os sons desaparecem diante do fenômeno que revela a sobrepujança do Criador, ao dominar as esferas do Vazio, em seu absolutismo triangulado, cúbico e esférico; e a luz e o silêncio se confundem na enigmática equação que determina a essência da deidade: sinais do Caos, que distorce nos confins do que não é e do que não está, ainda, a imagem que ecoa para dentro de si mesma. O monólogo se transforma em diálogo e o ovo cósmico se biparte na grande passagem da espiral.





Uma questão emerge no turno da dimensão atemporal:
  • Se o Abismo fora a expressão do inominável, que já era sem nunca ter sido, planando no vazio absoluto, a quem pertencia a sua face? 
Na indagação, uma fenda proposital é inferida. A alusão ao pronome interrogativo quem implica o determinismo de um ser organizado, portador de uma inteligência complexa e co-protagonista na cena da proto-criação dos mundos infinitos. Estabelece-se, a partir dessa premissa, a grande cisão, que imperou no trânsito que aparta a não - criação da pré - criação. À referida assertiva, portanto, segue-se a reflexão metafísica - especulativa: instrumental metodológico da Cabala, e que, em consonância com o texto bíblico e com a ciência hermenêutica, fornece a matéria basilar para o desvelamento de uma verdade incrustrada na narrativa sobre o início dos tempos, no qual a Criação se confunde de forma colossal e espetacular com a não - criação; o não - ser não fecunda o ser, antes, as duas faces, aparentemente antagônicas, compõem o arco da aliança, que suporta as forças emergentes do Caos, em estados congeminados, porém distintos entre si.





Na transitividade postulada entre a não - criação e a pré - criação, um espaço adimensional, quiçá mais denso, mais profundo e mais temível do que os próprios termos do Universo. Esse tópos da não - dimensão tivera sido, indubitavelmente, o outro vazio sobre o qual não há e jamais haverá descrições plausíveis, objetivas ou passíveis de serem alcançadas pela torpe, diminuta e finita compreensão humana; será, pela via especular, uma mera representação da imaginação imprecisa do Homem sobre o lugar e os eventos acontecidos no vácuo eterno.  É, de forma terrífica, o estádio agudo e mortal do silêncio do qual duas entidades nucleares protagonizaram o fluxo caótico, informe, sem cor e sem luz: DEUS, a substância criadora, e LÚCIFER, o extrato criacional. Duas faces antagônicas e complementares entre si, dois extremos vertidos de fonte singular; expressões bipolares e multifacetas de uma entidade, e o equilíbrio das forças, que, no embate cosmológico, gerou o tensionamento da matéria densa, concêntrica, e inibidora da luz primordial.




O fenômeno que considerou o aparente desvio da Luz ou o seu velamento em suspensão, no espaço fixo do tempo do não - tempo fora, com efeito, um fato único e necessário para que, diante da desordem estabelecida antes do nascimento do Tempo, as duas forças contrastantes duelassem e definissem, para além das zonas temporais e atemporais, o destino inevitável do Nada Absoluto em processo de desfazimento para se organizar em escalas não - cognoscíveis pelas infinitas assembleias angelicais; elos da cadeia luminescente e  pilares que sustentaram na Eternidade a grande e inacessível morada de Deus, em sua forma criadora - o Ser amorfo, latente, tremendo e absolutamente inefável. O Abismo sempre tivera uma face: substância cravejada por elmos da inveja e armada com lanças do mais nefasto dos sentimentos: a Cobiça. A Luz, em sua ebulição esmagadora, forjando raios lancinantes, consumidores e coléricos, jamais tivera uma face. Assim, outra indagação se impõe, portanto, para o entendimento sobre o fatídico evento, que gerou os primórdios; no hiato agudo e exterminador no qual a suprema inteligência e sua criatura prima se enfrentaram:
  • Se Lúcifer era a própria forma do Abismo em sua magnitude furiosa e rebelde, quem era Deus?




O Abismo, em sua morfologia essencial, dinâmica e imortal não cessa a sua atividade. Qual seja: a reversão da Luz, que, em sua volta cíclica, é condensada e amalgamada com elementos incorpóreos; a fornalha que mantém as hostes rebeldes em prontidão eterna, aumentando a goela da espiral, que traga mundos, universos, astros, e varre, na imensidão das formas perfeitas, o complexo estrutural da vida, que, em última análise, é a representação real e virtual da Luz em estágios e gradações enigmáticas. O segredo da Luz e seu rastro, que rasga o infinito como flecha de fogo, lançada por um arqueiro incandescente caminha, silenciosa e em planos horizontais para nunca mais retornar ao seu ponto de partida. Na origem, a Luz fora a testemunha que contemplou, com sensores vitais, a batalha descomunal entre uma legião de anjos revoltosos, todos liderados pelo poderoso Lúcifer, contra a unidade magistral da criação: Jeová. Assim, sobre a Luz que emergiu do Caos para romper a distância do não tempo, e continuar, ininterruptamente, a sua trajetória no tempo, cumpre revelar que aquela, enquanto elemento imutável, carrega em seu feixe os restos atemporais de uma luta que não teve vencedores nem tampouco perdedores. Em stand by, as forças caóticas, antes conjugadas, ocuparam espaços contrários e vagas desditosas.





No vazio imensurável, a massa informe e desprovida de qualquer significação. Não havia a ascendência da vida: mote irrefutável, que denunciou a existência das trevas, e que pareceriam eternas  se  não  fosse  a  intervenção  fulcral  do Criador.  Não  obstante  o  cair  da  escuridão sobre o não - espaço, antes do advento dos primórdios, o Abismo, condensado e único, rondava imperiosamente, a esfera sem marcas tangíveis, mas que pulsava sua força orgânica, sísmica, ultrassônica e exponencial, promovendo um movimento, que emanava do centro em direção às margens, e alargando as fronteiras dos espaços sem limites. Não existiam, portanto, extremos. A cadeia avassaladora da Luz, em seu estado originário, bestial e desordenado, estremecia o próprio Abismo em sua extensão luminar, e que, em estágio final, se comportava como elemento motivador e dinâmico da contraluz. A contraluz não é a escuridão. Logo, a questão não estabelece postulados maniqueísticos, no turno da reflexão cabalística, acerca do enfrentamento, no Caos, entre Iavé e Samael. O Mal que o Homem não conhece não é o oposto do Bem. Este último, por sua vez, não é o avesso daquele. Ambos, Bem e Mal são partes essencias de uma realidade unívoca, uníssona e única. A voz, o som e o corpo, portanto, se dividiram em duas instâncias díspares, contraditórias e semelhantes.





Na fenda primeva na qual as forças se separam, Deus, se transubstanciando em espírito, se lança magistral e integralmente sobre a face das águas. E pairar sobre a face das águas significa invadir por cima o elemento fundamental para a existência de todos os seres viventes e que carregarão em seus pulmões o fôlego, o sopro do Criador - a Água; o sinal mais remoto dos tempos da Criação; a prova de que o Criador deu forma àquilo que flutuava sem corpo e sem forma nos vazios imponderáveis do Tempo que não havia sido gerado; do tempo que não havia emergido das densas trevas, que povoaram os ilimites dos mundos, quando o primeiro ser criado enfrentou o Pai nas esferas da densidade incorpórea. Na atemporalidade, a marca eterna da cisão, que dividiu a Luz em feixes vibratórios dessemelhantes. Assim, Deus, em sua infinita sabedoria, ao dominar o espaço aéreo, que estava sobre as águas, Aquele estabeleceu a tênue distância entre o mundo sobrenatural, a sua própria deidade, e o mundo natural, as águas, berço da vida, donde se originariam todos os seres vivos; e, por último, o Homem - a pedra angular de seu projeto apoteótico.




Estar sobre as águas é guardar, é proteger, é preservar algo ou alguma coisa como uma camada invisível e necessária para a manutenção do equilíbrio das forças da Criação; é, também, o registro inviolável  de que, após o Caos colérico, a ordem fora estabelecida, definitivamente. Todavia, para além do que o texto bíblico sugere, pairar sobre as águas revela a verdade que sela a divisão do mundo espiritual em duas realidades distintas. Qual seja: ao pairar, com seu espírito, sobre a face aquática, Deus permaneceu imóvel no ar; sustentou-se como sentinela; manteve a guarda e, finalmente, dominou o éter original. Estar sobre a face fluidica das águas, em sua totalidade, desvela outra imagem, talvez a mais bela de todas, desde que a desordem cedera lugar às hierarquias de luz, cujos limites começam no portentoso trono de Deus, onde espírito e luz constituem a substância da divindade e terminam na terra dos ancestrais adâmicos: a propiciação da vida em seu esplendor complexo, multiforme e plural. Deus paira e fecunda o mundo com sua vontade soberana e inquestionável. Entre o líquido e o espírito pairante, um espaço oco, que, na verdade, é o duto que liga o mundo sobrenatural ao mundo natural; é o elo fundador entre o Criador e a sua criação.




A posição de Deus diante da expansão das trevas e da emergência do Abismo, cuja face é a representação caótica da própria Luz, em reversão, que tende a sugar ferozmente tudo que pertence ao mundo das formas, é o índice notável de que a guerra mal começou; é o flagrante inconteste de que Deus, em estado de alerta, mantém a vida em seu decurso natural e impede que as sombras espessas transformem a matéria na antimatéria. A face, segundo a descrição nas Escrituras Sagradas, é das águas, pois Jeová é destituído de contornos faciais. O Abismo, por ser oriundo da substância da deidade, também não é dotado de face. Conclui-se, portanto, que o Abismo como Deus, incondicionalmente, é. Destarte, mais uma questão se impõe ante a dialética imposta pela verdade bíblica: 
  • Ora, se o Abismo e Deus são amorfos, por que o mundo natural é a representação da forma, através das águas faceadas, e o império das trevas aparece sob o risco de uma face enigmática e sem forma definida?
Não há máscaras no mundo informe, originário, onde a força criadora eclode sem limites na Eternidade. Onde a não - forma impera, a igualdade é a condicionante de todas as naturezas: a natural, a sobrenatural e a que está além da sobrenatural: placenta que gerou Deus, e que por sua vez, engendrou, a partir de sua ignescência eterna, a luz que brilha, às avessas, na face que, na atemporalidade, fora chamada no tempo do não - tempo de Abismo.





A batalha entre a Luz e o Abismo continuará até à consumação dos séculos. Entretanto, ultimando o enigma caótico, paira uma indagação no ar:
  • Se o Abismo tem uma face, aonde está a face de Deus?


Um comentário:

Unknown disse...

Muito Bom... O senhor terminou de forma que me deixou constrangido diante o criador !

A face de Deus nos aguarda na ETERNIDADE meu caro .... nos vemos la!!!!!!