22 de setembro de 2010

HIPERSIMBOLISMO E MULTIRREALISMO EM JOSÉ SARAMAGO

Proposituras poéticas


A escrita artística de José Saramago, nas trilhas em que percorreram assinaturas férteis no idioma de Camões, ocupa um lugar ímpar na literatura do vernáculo português. Tal apontamento inicial não se baseia no fato histórico, e ainda único na literatura em língua portuguesa, que foi o reconhecimento internacional que valeu àquele o prêmio Nobel de Literatura, o primeiro no circuito da lusofonia. Muitos arriscam, por este turno, olvidando-se, de forma pecaminosa, que o texto artístico, qualquer que seja o seu autor, está acima de qualquer especulação e / ou elementos temporais e representativos de épocas distintas. Assim, o texto literário de Saramago, a despeito disso, não está à mercê desta ou daquela láurea. É refém, sim, da Arte, que, soberana, confere, através da eternidade, o grau e o valor necessários para que a obra, neste caso, a literária, espelhe, na ordem de grandeza de um artífice, a sua produção artística, e, principalmente, a sua linguagem. Esta, sim, denunciadora inconteste de um tempo, de uma realidade; e, portanto, a assinatura confessa de um homem dito epocal, para além das classificações que marcam a história, a historiografia literária, a crítica textual; e todos os discursos congêneres que intentem legitimar a escrita crítica sobre um autor modelar, por excelência.
Nesta senda, cumpre asseverar que sou remanescente de um grupo de estudiosos que, em busca da verdade poética, redescobre, na letra artística, outras mensagens, outras realidades, outras vozes, ainda inaudíveis, mas latentes na tessitura do artista em tela, uma vez que concebo o texto literário como um labirinto vivo, cujos corredores, flagrantemente mortais, mudam de lugar todas as vezes que promovemos o exercício profícuo da leitura.
Destarte, deduzo, portanto, que as possíveis saídas não existem, os terríveis minotauros são imortais; e tal qual Sísifo, repetimos a trajetória realizada por um desgraçado Ícaro, sentenciando um tempo que não se esgota, e revelando, em sua dynamis fundadora, fundante e refundante o espargir luminar da poiesis - nascedouro primo da verdade literária.
O texto de José Saramago, compreendendo o espaço poético no qual a letra artística em foco se torna ímpar, é, de forma redundante, exemplar, ao prescrevermos um ensaio, que enseja a representação transmolecular de uma matéria que não existe. O inexistente é a palavra de ordem e tomo invisível de uma literatura ou de uma produção poética, qualquer que seja a letra crítica que adiramos, ao transpormos a barreira sígnica e transígnica, na qual a verdade do texto de Saramago repousa.
A postulação erigida acima rompe com as estruturas possíveis, calcadas, por este turno, em sentenças da ordem da historiografia e críticas canônicas que, letárgicas, não parecem perceber a desordem que marca as escritas artísticas no novo fin-du-siècle ou na transição, marcada pela Decadentia. Estaríamos todos enredados por um novo romantismo ou reescrevendo a corrente homônima sob a égide de um fenômeno siamês? A travessia, que todos protagonizamos, intermediando espaços contínuos, deflagra, para além do olhar humano, o registro da letra poética, que salvaguarda a força da poiesis em sua manifestação sob o signo do inefável; daquilo que pertence à ordem do inesgotável em literatura.
Penso, de forma radical e oportuna, que o possível leitor deste ensaio deve estar fechado em copas, e buscando, à sombra nefasta de um período do entresséculos, o risco poético que desenha a verdade do texto de José Saramago. Neste empilhamento de sentenças, que constroem e desconstroem o homem dito temporal, ou quiçá o sujeito histórico, no limiar da nova centúria, apraz-me, sobremodo, identificar a literatura de José Saramago como escrita refratária de verdades díspares, confluentes, híbridas, e vacilantemente hologramáticas, conduzindo o leitor por caminhos de solos movediços a espaços outros, e que são marcados por um ageografismo incidental; determinações poéticas do não - espaço, cindindo os limites do suprarrealismo e da realidade metafantástica ( termos que inauguro, oportunamente, segundo a poética de Saramago ).
Clarificam-se, portanto, para o poeticista, as fronteiras ultimadas daquilo que se postula como a verdade contida no texto literário, para além da significação e da metassignificação modulares. A compreensão do texto de Saramago, a priori, pode (re)trair a percepção de seus receptores (os leitores prováveis). No entanto, à traição ou (re)tração segue-se o desvelamento de uma verdade textual, que não está circunscrita nesta ou naquela obra, ou neste ou naquele anunciado. O olhar e a voz partícipe de um autor, ludibriado pelo silêncio poético, nos remetem às cenas extraordinárias construídas em suas narrativas. Uma vez (re)traídos, descambamos todos, indelevelmente, para o estado inebriante que sua literatura nos provoca, no sentido mais hermenêutico que o vocábulo sugere, promovendo a aura hipersimbólica que orbita a poética de cartilagem, também multirreal, e que, embora estabeleça um marco divisor na literatura em língua portuguesa, que é a obra de Saramago, no século XX, estranhamente absorve, para a fortuna em literatura, parte do acervo da Decadentia, do trânsito para o século do maquinarismo e das distopias emergentes – proposições renovadas da letra crítica, que empreendo, acerca desse autor de condição atópica no risco do criticismo.
Ora, ao contracenar nesta escrita crítica com o autor, que deslinda universos paralelos, beirando o contradito do humanus, proponho, como poeticista, não a dissecação ou a retórica periodológica, que possa esquadrinhar e / ou reduzir a estética de uma obra no decurso de sua evolução. Este posicionamento, antes de ser uma defesa ilibada, é, com efeito, a postura da ciência literária, que, meticulosamente, percebe o texto enquanto poiesis, em seu espaço de acontecimento fenomenológico, para lançar as bases de um criticismo emergente, visando à abertura dos selos de totens enigmáticos para a decifração das verdades poéticas constituintes da escrita de Saramago.
Impetrado o axioma, cabe-me o exercício da descoberta dos níveis que envolvem a verdade textual. Assim, ao tratar da produção poética desse escritor, a pena científica não derramará a tinta rubra nas linhas deste ou daquele romance. Antes, escreverá a verdade que navega nas ondas textuais de um autor, que se desaguou em si mesmo para (re)universalizar uma literatura consagrada por mares navegados d’antanho e por sonhos passadistas; das mensagens de reis míticos e encravados no imaginário de um povo conquistador, das façanhas épicas, e de um saudosismo hiperbólico, mergulhando em uma nostalgia secular o melancólico povo português no rumo de sua ruína geopolítica: tema para uma náusea que ultrapassa o sentido sartriano de ser.
As considerações anteriormente arroladas, que denomino laminares, a meu ver, podem ferir a letra crítica, pois o empreendimento da investigação, da revelação e da compreensão da verdade poética em Saramago pode desqualificar o poeticismo concorrente na obra do autor em foco, neste ensaio. Daí, a tentativa e a insistência de meu exercício, como poeticista, em erigir um texto essencialmente crítico, problematizante, elevando a Poética, no turno de sua epistemologia, ao nível de sua própria reflexão. A poética de José Saramago, neste sentido, é manancial de verdades multíplices, que transitam em todos os textos de autoria daquele, e que não pertencem a esta ou àquela narrativa, mas circulam esfericamente para todos os espaços e para todas as épocas, como se o todo fosse contínuo e não partitivo, segundo a própria divisão de suas obras por temas e títulos.
O exercício da intertextualidade, neste ensaio crítico, é incabível, pois inconcebível é o tratamento da verdade do texto poético de José Saramago, alocando aquela como representação de uma enunciação ou enunciado, aos moldes de um estudo sistemático dedicado a outras literaturas, segundo o canonismo levado a efeito pelos estudos tradicionais da historiografia literária. Assim, o ponto axial na presente reflexão não se atém à tessitura da Caverna ou ao Memorial do Convento, por exemplo. Esdrúxula ponderação será aquela que intente intertextualizar os referidos textos, considerando que ambos são registros da letra de decadentia esgarçada, cujas substâncias referem-se a temas adversos e transitam em realidades distintas. O que pode parecer uma babel, em Saramago, é, na verdade a Babel bíblica, ipso facto, para assombro de leitores leigos ou de representantes da ciência literária.
Proponho, inusitadamente, a ação de uma personagem que, tateando à meia – luz, redescreve a verdade da tessitura em tela para evitar desvios que comprometam a trabalho efetivo de valoração do referido texto. Outrossim, cumpre destacar que José Saramago encarna, de fato e direito, a face doutra personagem que, no trânsito epocal do século e milênio, vislumbra, com o olhar arremessado para o passado, a possibilidade de reescritura da literatura sobre Portugal e para além de uma lusitanidade histórica sob a ótica de uma outra realidade. Aqui, portanto, cabe assinalar que para Saramago a Alteridade é a própria realidade. Sua escritura é a Alteridade, pois suas personagens atravessam o espaço da ficção para se alimentarem e retroalimentarem do fingere em seu universo mais abrangente que podemos imaginar.
Reside neste exercício do pensar a complexidade da tessitura poética de Saramago e sua compreensão, que não se dá do texto que reflete a realidade, fomentando o retorno à letra como a imagem que volta ao espelho. Ao contrário: a compreensão se dará através do seu reverso. As realidades flutuantes, que denomino hipersimbólicas, e as realidades de campos redimensionados, que denomino multirreais, são espaços excluídos da tessitura poética em questão, em análise primária. Em visão secundária, invadem o corpo da escritura para, enfim, sob o primado da Linguagem, legitimarem-se como ficcionalidade; como móvel literário que qualifica o texto do referido autor como expressão artística.
Retornar ao passado ou avançar para o futuro, ou, ainda, redefinir-se no presente, como faz Saramago em sua poética camaleônica, confere à tessitura, no decurso da desconstrução da realidade o portrait da Alteridade, cada vez mais esvaziada, desde que o século XX inscreveu sua verdade epocal, e, em tempos atuais, pulverizada. O ar, aparentemente fantástico, enverniza e hiperboliza a voz ácida e cáustica de um autor que desfere críticas a diversos estatutos edificados sobre os escombros de uma realidade em franca decadência.
A letra artística de José Saramago é o reflexo imponderável de um tempo que não pode ser descrito pelo turno da cronologia ou da diacronia em simbiose, pois a modernidade que se transformou na pós - modernidade, e o finissecularismo que se transformou em tempos pós-metafísicos, constituem-se, em última análise, na matéria - prima da poética de um autor que se hipersimboliza para conjecturar as diversas realidades, em contradição vertical. Quanto à realidade, pulverizada pela dinâmica da desconstrução, que desreferencializa aquela, Saramago multiplica-se em alteridades inexistentes para impor, não um modelo de verdade, mas expor a fratura do homem cambaleante de um milênio sombrio.

João Carlos de Souza Ribeiro

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