19 de setembro de 2010

PELAS VEREDAS DO INCONSCIENTE: SOB O SIGNO DE DESEJO

  
Poderia começar este artigo, indagando, ao meu caro leitor ou leitora, sobre o seu desejo mais recôndito, ou, talvez, revelar para o mundo inteiro os meus verdadeiros desejos. Aliás, há desejos que podem / devem ser ditos, e outros que devem / podem ser ocultados; como também há muitos que devem / podem ser revelados, e outros que jamais devem / podem ser conhecidos. Não é mesmo?
Você já se perguntou quantas vezes desejou alguma coisa, e, por alguma razão, não alcançou êxito em seu intento? Já pensou, por exemplo, em ter sido o objeto do desejo de alguém e não o sujeito desta fabulosa ação? Pois bem, meu caro leitor, quantas vezes você já conjugou o verbo desejar em sua vida? Pode parecer estranho para você tal indagação, ou melhor, estranhíssimo! Eu desejo, tu desejas, ele deseja, nós desejamos e os elos se desencadeiam infinitamente. 
Desejo não se conjuga. Desejo é. E, por ser o fenômeno que envolve o universo desiderático, (desejo vem do verbo desiderare, do Latim), quando desejamos algo em nossas vidas, estamos, efetivamente, plenificando o nosso Ser de forma audaciosa, completa e impositiva. Logo, quem deseja é em toda a sua essência. A força motriz da ação de desejar alguma coisa ou alguém está na capacidade individual de cada um de ser. De ser para si, de ser para o outro, de ser para o mundo, e de ser, de forma transcendental, para as esferas mais altaneiras deste universo que se nos apresenta de forma misteriosa, envolvente saborosa; e provocando, em última análise, em todos nós, a incômoda angústia que nos lança no abismo de nossos próprios corpos.
Desejar é estar nos astros. É literalmente estar com os astros. Desta forma, portanto, estamos em pleno estado de con-sidera-ção. Considerar é estar no firmamento, compartilhando a luz que transborda dos astros, quer estejam suspensos, como luminares permanentes, quer estejam em queda livre, de forma espetacular sobre a terra viva, na condição empoeirada que nos recolhe(rá) num futuro prestes ao congelamento infalível. Em outras palavras, sob a força inercial da Morte.
Ora, se a relação do desejo funda a condição do ser que se move por todos os lados na realidade, na qual estamos inseridos, desde o gesto mais simples até o olhar mais insinuante, que podemos lançar sobre aquilo que desejamos (queremos) tragar para as nossas entranhas, a questão do ser se pauta na medida deste desejo em vias de realização ou não. Desejar implica ser, desde que o ser atinja o seu objetivo nuclear: a completude. A completude não se dá de forma aleatória, insana e desgovernada. Esta noção equivocada de muitos críticos da filosofia desconsiderou a idéia libertária e totalizante do pensamento existencial defendida por Martin Heidegger.
A completude, em instância final, é a marca universal do ser que só se dá sendo. Aqui, caríssimo leitor, o óbvio é mais do que necessário. Por quê? Porque a experiência do fenômeno, em seu acontecimento factível na realidade - o mundo que nos cerca, propriamente dito - e aquele que estabelecemos como referência prima são, com efeito, a tradução mais fidedigna do que somos, sob todos os ângulos. E o desejo como ação, como objeto, como projeto, e, sobretudo, como realização, é a linha que arremata o tecido de nossas vestes existenciais.
Desejar, portanto, parece confundir-se com Ser; ou Ser apresenta-se na condição do estado não conclusivo do Desejar. Como desejar sem ser? Como ser sem desejar? Ou, como desejar, apenas, obliterando, reduzindo ou desconhecendo o ser? Ou, para terminar as nossas indagações, como ser, de forma libertária, sem ao menos desejar? Tais questões, que descambam para as variáveis (im)previsíveis do que se entende por matéria “desordenada”, no nosso inconsciente, são verdadeiros arcaísmos na história da humanidade, desde que se descobriu que o Homem não é o ser dos instintos, como preconizaram os evolucionistas no século XIX, mas o representante singular do cogito; ou para ser mais objetivo, caro leitor, o ser pensante.
Neste sentido, estabeleço um ponto nevrálgico nesta discussão: a tarefa do pensamento une o Ser ao Desejo e vice-versa. Caro leitor, por quê? Por que é através da ação efetiva do pensamento é que transformamos o que temos de mais essencial – o (nosso) ser em (sua) plenitude individual – em desejo; às vezes, absoluto, às vezes, relativo. Ao desejarmos algo externo a nós, somos; ou somos quando expressamos aquilo que desejamos. A relação bilateral, portanto, se sustenta pela atividade contínua do pensamento, que, em última análise, nos eleva, acima da cena natural, e nos conduz para o patamar do ser dos contrários, que somos, e que nos marca como a única espécie errante no planeta; ou seja, para o ser cultural que somos, fundados num desejo que nos torna seres angustiados, e movidos por uma força estranha que surge quando confrontamos, inexoravelmente, a Alteridade.
Destarte, cumpre-me afirmar que o Desejo (Wunsch) (nos) impõe a circularidade do Ser, a sua imanência, a sua transcendência, a sua fenomenologia e a sua organicidade. O Ser é a variável mais provável que determina a peregrinação à qual nos lançamos numa roda viva e infinita, e que nos torna refém de êxodos eternos e de desertos circulares, ainda que nossos projetos se definam pelo auto-expatriamento do si e não pelo sitiamento da entidade subjetiva.
E o primado do Desejo continua... E viva o Ser das pulsões!


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